07/02/2010

O Mestre se foi...

Isso estava até cheio de poeira... então, agora que voltaram as aulas, coloco um texto que fiz pra um dos fóruns em que participo, pode parecer estranho a primeira vista, mas acho que não é tão diferente das outras coisas que figuram aqui...


Depoimento de um vassalo do Conde Otto Von Doom, a cerca dos acontecimentos envolvendo o desaparecimento do referido conde.

Repito-vos, cavalheiros, que vosso interrogatório é inutil. Detende-me aqui para sempre, se quiserdes; prendei-me ou executai-me se tendes necessidade de uma vítima para propiciar a ilusão a que chamais justiça. Não posso porém, dizer mais do que já disse. Contei-vos, com toda a sinceridade, tudo de que me lembro. Nada foi distorcido ou escamoteado, e se alguma coisa permanecer vaga, é apenas devido à nuvem escura que caiu sobre meu espírito - essa nuvem e a natureza nebulosa dos horrores que a fizeram abater-se sobre mim.
Digo mais uma vez: não sei do que foi feito de Otto, o Formoso, embora pense – quase rezo para isso - que ele foi engolido por uma indescritível escuridão, e agora está em oblivio pacífico, se é que existe, em algum lugar, coisa tão bem aventurada.
É verdade que por cinco anos fui seu vassalo e que, em parte compartilhei de suas terríveis pesquisas sobre o desconhecido. Não negarei, conquanto minha memória esteja insegura e vaga, que essa vossa testemunha nos possa ter visto juntos, na estrada de Gainsville, ao sul da Latvéria, caminhando na direção do Pântano do Cipreste Grande às onze e meia daquela noite tenebrosa.
Mas com relação ao que se seguiu e ao motivo pelo qual fui encontrado sozinho e aturdido na margem do pântano, na manhã seguinte, devo insistir em que nada sei, salvo o que já vos narrei repetidamente. Dizei-me que nada existe no pântano ou em suas proximidades que pudesse constituir o cenário daquele episódio aterrador. Respondo que eu nada sabia além do que vi. Visão ou pesadelo pode ter sido - e visão ou pesadelo espero desesperadamente que tenha sido - mas, no entanto, é tudo o quanto minha mente reteu do que ocorreu naquelas horas chocantes depois que saímos da vista dos homens. E por que Lorde Destino não voltou somente ele ou seu espectro - ou alguma coisa inominável que não sei descrever - poderão dizer.
Nos últimos tempos Destino andava interessado em algo mais macabro que vocês podem imaginar! Com sua vasta coleção de livros estranhos e raros sobre temas interditos, ele passava as noites em claro. Na maioria, acredito, são em árabe; e o compêndio de demoníaca inspiração que acarretou a tragédia - o livro que levava no bolso ao abandonar o mundo - estava escrito em caracteres que jamais ví em parte alguma. O mestre jamais se dispôs a me dizer o que havia naquele livro. Destino sempre me dominou e eu o temia. Lembro-me como estremeci ante sua presença na noite anterior ao fato hediondo, enquanto ele falava sem cessar de sua teoria - por que certos cadáveres nunca se decompõem mas permanecem integros em suas tumbas por mil anos. No entanto, já não o temo mais, pois suspeito que ele conheceu horrores além do meu alcance. Agora temo por ele.
Mais uma vez repito: não tenho nenhuma lembrança clara de nosso intuito naquela noite. Decerto teria muito a ver com o livro que o mestre levava consigo - aquele livro antigo, num alfabeto indecifrável e que lhe chegara da India um mês antes - mas juro que não sei o que esperávamos encontrar. Vossa testemunha declara que nos viu às onze e meia na estrada de Gainsville, seguindo na direção do Pântano do Cipreste Grande. É provável que isso seja verdade, mas não me lembro com nitidez.
O lugar era um cemitério antigo. Tão antigo que eu me sobressaltava ante os inúmeros indícios de anos imemoriais. Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e curiosas ervas rasteiras, envolvido por um vago fedor que minha fantasia ociosa associava absurdamente a pedras putrefatas.
A primeira impressão vívida que tenho de minha própria presença nessa necrópole terrível refere-se ao ato de deter-me com Destino diante de um certo sepulcro semi obliterado e de arrojar em seu interior certos fardos que, aparentemente estivéramos carregando.
E sem delongas tomamos das pás e começamos a afastar as ervas, a grama e a terra da cova rasa e arcaica. Após expormos toda a sua superfície, que consistia em três imensas lages de granito, recuamos alguns passos para examinar o ossuário. O mestre parecia estar fazendo alguns cálculos mentais. Depois voltou ao sepulcro e, usando a pá como alavanca, tentou erguer a laje que ficava mais próxima de uma ruína de pedra e que pode ter sido outrora um monumento. Não conseguindo seu intento, fez um gesto para que eu o auxiliasse. Por fim, nossos esforços combinados fizeram com que a pedra se soltasse. Levantamo-la e a arredamos do lugar.
Com a remoção da laje, ficou à vista uma abertura negra, da qual irrompeu um efluxo de gases miasmáticos, tão nauseantes que saltamos para trás, tomados de horror. Após um intervalo, entretanto, aproximamo-nos novamente da cova e achamos as exalações menos intoleráveis.
Dei um passo a frente ameaçando tomar a dianteira, mas Destino me puxou pela gola da vestimenta, pondo sua mão de ferro sobre minha garganta e me fazendo sufocar... só ele poderia adentrar aquele local.
Depois ele apertou-me a mão, sobraçou a bainha da espada na cinta e desapareceu naquele indescritível ossuário. Durante um minuto ainda percebi o brilho da tocha e escutei o roçar da capa de seda, enquanto Destino andava, e o leve ranger de sua armadura; mas o brilho da luz sumiu repentinamente, como se ele houvesse dobrado uma esquina na escada de pedra e quase ao mesmo tempo o som cessou igualmente. Eu estava só, porém ligado às profundezas desconhecidas sob os raios esforçados do exangue quarto-crescente.
Então da abertura da cripta veio um grito e eu chamei meu mestre com voz tensa. Por apreensivo que me sentisse, eu não estava preparado, entretanto, para as palavras que subiram daquela cova hedionda, em tons mais alarmados e hesitantes do que eu já havia escutado de Otto Von Doom. Ele, que se despedira de mim com tamanha calma havia pouco, agora chamava lá de baixo num sussurro titubeante, mais pressago que um grito sonoríssimo:
"Meu Deus! Se pudesse ver o que estou vendo!" Eu sabia que não era a mim que ele chamava...
Não pude Responder. Mudo, só fiz esperar. Mais uma vez escutei a voz de meu mestre, ainda repassada de medo e agora aparentemente impregnada de desespero:
“Santo Deus... é horrível!”
Voltou o silêncio, apenas quebrado pela torrente de perguntas sobressaltadas que eu fazia. Ouvi então novamente a voz de Lorde Destino, num tom de delirante consternação:
"Verme maldito! Pelo amor de Deus, repõe a Laje no lugar e sai disso se puderes! Deixa tudo mais e corre... é tua última oportunidade! Faz o que eu digo e não peça explicações!"
Eu escutava, mas só conseguia repetir minhas perguntas frenéticas. Em meu redor estavam as tumbas, a escuridão e as sombras; abaixo de mim, algum perigo que sobrepujava o alcance da imaginação humana, um perigo que fazia frente ao homem mais perigoso que eu já conheci.
“Pelo amor de Deus, põe a laje no lugar e te manda, Maldito!"
Nesse ponto, o murmúrio de meu mestre converteu-se em grito, um grito que aos poucos se transmudou em uivo, carregado de todo o horror das eras...
Depois disso, caiu o silêncio. Ignoro por quantos minutos permaneci sentado ali, estupefato. Sussurrando, murmurando, gritando, berrando. Vezes sem conta, no transcurso daqueles minutos, sussurrei, murmurei, chamei, gritei e berrei "Mestre! Mestre; Responde... estás aí?”
Foi então que sobreveio o cúmulo do horror... a coisa inacreditável, inimaginável, quase impronunciável. Já disse que foi como se passassem minutos depois de Lorde Destino emitir sua derradeira advertência desesperada, e que apenas meus gritos quebravam agora o silêncio horrífico. Contudo depois de algum tempo houve um novo estalido e eu apurei os ouvidos. Mais uma vez chamei: "Mestre estás aí?”, e como resposta ouvi aquilo que lançou essa nuvem sobre minha alma. Não tento, senhores, explicar aquilo... aquela voz... nem posso abalançar-me a descrevê-la em minúcia, uma vez que as palavras iniciais roubaram minha consciência e criaram um vazio mental que se estende ao momento em que despertei no Hospital.
Direi que a voz era profunda? Cava? Gelatinosa? Remota? Sobrenatural? Inumana? Desencarnada? Que direi? Ela marcou o fim de minha experiência e é o fim de minha história. Eu a escutei, e de nada mais tomei conhecimento... escutei-a enquanto permanecia sentado, petrificado naquele cemitério desconhecido do vale, em meio às pedras carcomidas e aos túmulos em ruínas, junto à vegetação pútrida e aos vapores miasmáticos... escutei-a subindo das profundezas mais absconsas daquele maldito sepulcro aberto, enquanto assistia à dança de sombras amorfas, necrófagas, à luz mortiça de uma lua exangue.
E o que ela disse foi:
"IDIOTA, DESTINO SE FOI...!"